quarta-feira, 26 de março de 2008

Por água abaixo

Assisti um filme atual em duas cores. Não se trata de um recurso artístico e nem um problema na minha televisão. Se existe algum problema, ele está em ambos os lados da tela, tanto o de dentro quanto o de fora. Afinal, foi essa nossa mania de querer tudo preto no branco que levou o filme “Mar adentro” por “água abaixo”.

Pegue um tema controverso, – no caso, a eutanásia – acrescente a ele mais uma pitada de polêmica, divida a massa, coloque cada metade de um lado (contra e a favor) e bata, ou melhor, debata. A mistura daria um resultado interessante, se não fosse um detalhe: as coisas não têm apenas dois lados. Achar que tudo pode ser dividido em certo/errado ou contra/a favor é como enfiar o mundo inteiro em duas caixas de sapato. Não cabe, não funciona, mas ainda assim continuamos tentando.

Infelizmente, personagens lineares ainda existem, mas pessoas lineares não. Por isso, quando alguém tentar te convencer de que você ou está certo, ou está errado, desconfie. Desconfie que nada é tão simples assim. Desconfie que, assim como personagens podem representar pessoas de verdade (como não é o caso de “Mar adentro”), pessoas de verdade podem representar personagens. Seja em um almoço de domingo, seja em uma tela de televisão, nós somos capazes de distinguir milhares das cores que as coisas têm. Então, reflita, por que ainda insistimos em enxergar tudo preto e branco?

sábado, 15 de março de 2008

Beleza demais tem sobra

Benhê, tô bonita? – Se você já ouviu, ou mesmo disse isso, sabe que, apesar de ser bastante agradável à visão, a beleza pode fazer muito mal aos ouvidos. E ao cérebro. Não que todo bonito seja estúpido ou todo inteligente seja feio. Não é essa a questão. A questão é que a máxima de que “beleza nunca é demais” tornou-se indiscutível. E, bem, talvez seja a hora de colocar um ponto de interrogação na frente dela.

Antes de começar a criticar o estereotipo dos bonitos-acerebrados, pare para pensar: ser bonito não é nada fácil. Nascer bonito sim, é fácil. Mas há muito tempo aquela beleza natural, que não precisa de retoques, deixou de ser suficiente. Os padrões de beleza estão cada vez mais altos e os olhos, mais exigentes. E agradar os olhos alheios é algo que exige muito tempo, paciência, dinheiro e dedicação. Ser o mais bonito então, nem se fala. Ou melhor, fala-se. Fala-se tanto que até Darwin, há mais de um século atrás, falava a respeito.

O homem é um animal (pode parecer uma afirmação óbvia, mas ainda faz doer os ouvidos de muita gente). E como animais dentro de um processo de seleção natural, fazemos de tudo para ser os melhores. Seja o melhor atleta, o mais agradável, o mais inteligente, o mais engraçado ou mesmo, o mais estúpido, todos querem ser o “mais”. Por isso, é natural alguns quererem ser os mais bonitos. Alguns, mas não todos. Quando a prioridade de uma sociedade inteira passa a ser uma só, devemos admitir, há algo errado com a nossa espécie.

Não se pode ser o mais bonito e o mais inteligente. Não se trata de preconceito, trata-se de uma afirmação prática. Para ser o mais bonito você precisa dedicar muito do seu tempo a isso e , para ser inteligente, também. Posso não ser a melhor em exatas (minha prioridade é outra), mas sei que muito com muito sempre dá demais. E talvez, pelo menos no Brasil, esteja começando a faltar pessoas suficientemente “qualquer coisa que não seja bonita”. Por isso, faça um favor à nossa espécie: de vez em quando, volte àqueles primórdios da nossa sociedade, em que a “beleza”, e não a “beleza extraordinária”, bastava. Desse modo você até poderá ser sincero ao responder aquela perguntinha lá em cima do modo mais agradável – Claro que sim, meu bem.

quinta-feira, 13 de março de 2008

A decadência dos alfabetizados

Uma boa notícia para os pais com filhos em idade escolar: seus filhos não serão mais estatística. E, se forem, ficarão fora daquele quadradinho onde está escrito “analfabetos”. Isso porque o governo de São Paulo criou uma solução simples, mas genial, para um fantasma que vêm assombrando o Brasil desde sempre, o analfabetismo. É fácil: para que as crianças sejam forçadas a aprender a ciência da escrita e do cálculo, todas as outras foram abandonadas. É isso mesmo, a partir de agora, as crianças do primeiro grau de algumas escolas públicas terão apenas aulas de português, matemática e, também conhecida como “segundo recreio”, educação física. O foco agora é aprender A escrever. E aprender O QUE escrever? Bem, não se pode resolver tudo, não é mesmo?
Como prova da eficiência desse sistema, me incubi de fazer uma projeção de como será uma redação desses “futuros gênios” quando se tornarem vestibulandos:

"Eu tenho uma mãe e dois pais. Minha mãe me disse que meus pais fizeram um acordo com a cegonha para me trazer. Mas eu não sou burro. Eu sei que cegonha não conversa com gente. E, se conversa, a do zoológico da minha cidade é surda, porque nunca me responde. Mas eu não sou burro. Sei que é comum gente surda. Eu mesmo acho que sou surdo. Minha avó me disse que quem é surdo não fala direito e eu falo mal pra caramba. Mas eu não sou burro. Eu falo mal, mas escrevo bem. Tanto que já prestei esse vestibular antes e não cometi um só erro de português. Infelizmente não passei. Mas eu não sou burro. Sei exatamente quantas vezes eu não passei nessa prova. E nunca erro a conta. Aliás, nos meus 25 anos de vida, com raiz quadrada 5, eu nunca errei uma só conta. O que é útil lá em casa desde que um dos meus pais morreu com a peste e o outro saiu para comprar cigarros há 10 anos, o mesmo que 5 vezes 2. Mas eu não sou burro. Sei que cigarros não são tão difíceis de achar. É por isso que eu acho que ele foi atrás de algum tipo de cigarro que pararam de fabricar. O coitado deve estar procurando até hoje. Ainda bem que não puxei ele, porque esse meu pai nunca foi muito esperto. Mas eu não sou burro".

Geração Lego®

Depois de superlotar nossos armários com coisas que, provavelmente, jamais sairão de lá, o comércio achou um novo espaço a ser preenchido, nossa memória. A nostalgia nunca esteve tão palpável, e, por conseguinte, tão comerciável quanto hoje. Por uma bagatela você pode recordar desde o primeiro momento em que pegou uma peça de Lego® na mão até o último super-caminhão-foguete que construiu com ela. Mas, a boa notícia para os nostálgicos é que isso não pára por aí. Em épocas em que a idade não te permite mais ser um construtor de coisas surreais, uma proposta bem palpável surgiu para preencher esse vazio, os filhos de Lego®.

A principal diferença entre os filhos reais e os filhos de Lego® é que os filhos reais não brincam de Lego®. Vendo aquelas voláteis pecinhas coloridas se transformarem em um bando de pixels, polegadas e atropelamentos virtuais, a idéia de que crescer não é tão bom assim surgiu na cabeça de muitos pais atuais. E, claro, das indústrias de brinquedos que, “virtualmente atropeladas” pela informática, encontraram nos pais nostálgicos seu novo nicho de mercado. O relançamento de vários brinquedos dos anos 80 e 90 fez com que a chamada Geração Z desenterrasse a sua infância de baixo de um mar de lango-langos e lu-patinadoras.

Ok, você não pode mais brincar com um pogobol. Mas o seu filho pode. E existe apenas uma ressalva para isso: provavelmente ele não quer. Sair pulando por aí em cima de uma bola pode soar divertido para muitos de nós, mas para os mais novos soa como parece: “sair pulando por aí em cima de uma bola” (por mais que isso lhe doa, é sim, pronunciado com desprezo). É redundante dizer que os tempos são outros, mas com o comércio da nostalgia tão em voga, tornou-se imprescindível. Talvez só assim seja possível que os pais modernos enxerguem vantagens no que as crianças de hoje gostam.

Saiba que um cubo-mágico não é a melhor maneira de desenvolver a capacidade cognitiva. Saiba que os cigarrinhos Pan continham gordura trans. Saiba que a Super Massa não é mais a melhor amiga da criatividade. Saiba que vários jogos de computador para os quais seus filhos esboçam um sorriso e você torce o nariz são mais complexos que um Banco Imobiliário. E só quando você souber tudo isso, estará se dando conta de que seus filhos são reais e que um passado não pode ser reconstruído com peças de Lego®.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Do nosso jeitinho

Para tudo no Brasil dá-se um jeito. Não podemos fazer o melhor? Damos um jeito. Não podemos contratar a melhor pessoa? Damos um jeito. Não podemos comprar o melhor? Damos um jeito. Nós damos tantos “jeitos” que, se cada país pudesse construir um ser humano, no Brasil ele teria membros provisórios e cabeça provisória. Mas, acredite você ou não, esse ser humano existe e anda visitando o exterior.

Quem “dá jeitinho” dentro do Brasil também “dá jeitinho” fora dele. O que não chegava a ser problema, até alguns anos atrás. Antes, o jeitinho resumia-se em não fazer “o melhor”, mas sim “o melhor que se pode fazer”. Agora, “dar jeitinho” é simplesmente fazer o mais fácil. Viver o presente, dizem alguns. Só que de tanto viver o presente, acabamos esquecendo as conseqüências dos nosso atos e tornamos, nós mesmos, seres humanos provisórios.

Brasileiro que não conhece a lei de um país, dá um jeitinho de nunca vir a conhecê-la. Brasileiro que não tem permissão de entrar, dá um jeitinho de entrar sem permissão. Brasileiro que não tem autorização para ficar, dá um jeitinho de viver na clandestinidade. É tanta bagunça na casa alheia que uma hora o dono da casa “dá um jeitinho” de nos mandar embora.

O problema de ser mandado embora é que nem todos os brasileiros são seres humanos provisórios. E uns acabam pagando pelos outros. Mas, quem disse que o mundo é justo? Nós, brasileiros, bem sabemos que não é. Afinal de contas, demos jeitinho durante muito tempo, mas nunca deixaram de nos visitar. Agora que estão dando jeitinho conosco, querem nos impedir de ir para lá. É, para isso, não tem jeito.

A arte de fazer mal-feito

De todas as informações politicamente incorretas, a mais fácil de ser demonstrada é essa: se você quer reconhecimento real pelo seu trabalho, faça-o de qualquer jeito. A demonstração é simples, tão simples que está nas atividades profissionais mais simplórias, aquelas nas quais (cremos nós) é impossível de se errar. Mas, pasme, não é.

Qualquer um questionaria a dificuldade de ser um ascensorista ou um “homem que carrega uma placa de PARE diante do sinal vermelho” (convenhamos, nem o nome da profissão é conhecido). Você ouve mães dizerem que seus filhos são excelentes médicos e, quando menos, ótimos publicitários, mas ninguém nunca ouviu de uma mãe que seu filho carrega placas como ninguém. Em um dia apressado nós nem sequer notamos os carregadores de placa. A não ser, claro, que eles errem.

Quando os carregadores de placa erram é a única ocasião de verdade em que paramos para pensar na sua profissão. Vendo um estudante estatelado no chão ou com uma marca de haste de placa no rosto, qualquer mortal seria tentado com pensamentos do tipo: “Meu Deus, qual é a dificuldade em se carregar uma placa?” ou “Nem isso ele faz direito”. Isso, caro, é reconhecimento.

Eu não disse que todo reconhecimento é bom mas, bancando a Polyanna, mesmo nos ruins é possível achar algo de construtivo. Antes não dava para ser um “bom carregador de placa” ou um “mal carregador de placa”, era-se apenas um “carregador de placa”. Depois de conhecer carregadores de placa que não fazem seu serviço direito, talvez, com um pouco de esforço, você esteja apto a identificar “bons carregadores de placa” por aí. Ou, quem sabe, “bons médicos” e “bons publicitários”.