terça-feira, 26 de agosto de 2008

A gente ouve o que se ouve.
A gente vê o que se vê.
Na gente há o que se houve.
A gente lê o que se lê.

A gente come o que se come.
A gente pede o que se pede.
A gente pede o que se come.
A gente come o que se pede.

A gente lambe o que se lambe.
A gente esconde mas se lambe.
A gente lambe o que se esconde.
A gente lambe e se esconde.

A gente fala o que se fala.
A gente fala o que se escreve.
A gente escreve o que se fala.
A gente fala e reescreve.

A gente pensa o que se pensa.
A gente pensa que entende.
A gente entende que se pensa.
A gente pensa e não entende.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Chega

Minha família não era chegada no trabalho.
O dinheiro não era chegado na minha família.
Eu era chegado na escola.
Minha família era chegada em mim.
A escola não era chegada em mim.
O trabalho, sim, era chegado em mim.
Mas o dinheiro não era.
A miséria era chegada em mim.
A fome também era.
O pão não era chegado em mim.
Eu era chegado no pão.
O pão era chegado na minha mão.
Minas pernas eram chegadas na corrida.
O policial não era chegado em mim.
A arma dele era.
O cinegrafista amador era chegado em mim.
Mas não no policial.
A televisão era chegada no escândalo.
O escândalo era chegado em mim.
A polícia não era chegada em mim.
A opinião pública era.
A opinião pública era chegada no dinheiro.
Eu era chegado no dinheiro.
Todo mundo era chegado no dinheiro.
O dinheiro ficou chegado em mim.
Todo mundo ficou chegado em mim.
Eu fiquei chegado em roubar pão.

domingo, 25 de maio de 2008

Porquê

Em 11 de junho de 1963, um homem de saia marchava pela rua. Olhava para a frente com profunda concentração, como fazemos quando nossa mente está ausente. Mas a sua não estava. Completamente consciente de si e transparecendo uma tranqüilidade invejável, o homem, ignorando o tráfego, sentou-se no meio da rua, cruzou as pernas e fechou os olhos. Após alguns minutos de silêncio, o homem agarrou o pequeno galão ao seu lado e se batizou com o conteúdo. Enfim, acionou o aparelhinho em sua mão e colocou fogo em si mesmo. As labaredas atraíram todo um contingente de pessoas, de policiais armados a motoristas curiosos. Mas o que mais surpreendeu a multidão não foi o fogo em si, mas o fato de que, apesar de todo estrago que fazia, consumindo o homem até a morte, ele permaneceu em seu lugar, simplesmente, impassível.

Um dia depois centenas de jornais ocidentais brigavam pela foto do monge vietnamita em chamas, protestando contra o governo de seu país. O objetivo era dar àquele homem a primeira capa e imortalizar seu ato de coragem. Por um dia. Por um dia seus inimigos seriam inimigos do mundo inteiro. Mas apenas por um dia, porque amanhã, depois de desgastado o assunto, estaríamos à caça de outro inimigo, seja ele um seqüestrador de criancinhas, um político italiano ou o governo russo. E assim tem sido há muito tempo por aqui: heróis e vilões descartáveis, uma grande batalha contra sabe-se-lá-quem.

Enquanto esse e outros monges lutam pelo que acham justo, a nós, pobres ocidentais brasileiros, falta contra o que lutar. Não, nós não temos um inimigo em comum. Não saímos por aí ateando fogo em nós mesmos porque não temos coragem. Não fazemos isso porque não temos porquê. Não um porquê de verdade, só um monte de porquês inventados. Nossa luta é contra um assassino de uma vítima desconhecida, contra o seqüestrador de uma criança que jamais encontraremos, contra um governo que achamos mais ou menos. Tudo por aqui é mais ou menos, nada é bom o suficiente pra virar heroísmo. Nada é ruim o suficiente para causar a revolta geral. E a revolta, brasileiros, a revolta é indispensável. Todas as grandes conquistas da humanidade foram feitas na revolta. Mesmo para um monge que viveu na paz, o auge da vida foi na revolta. Afinal, enquanto a paz nos dá um porquê para sobreviver, a revolta nos dá um porquê para morrer. E quem não tem pelo que morrer, não tem pelo que viver.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Laranjada do Wal-Mart

Nós não somos donos do Wal-Mart. Nós não herdamos o Wal-Mart quando nascemos. Nós não pegávamos comida de graça no Wal-Mart quando pequenos. Nós não éramos donos do Wal-Mart quando enfrentamos o governo por um pedaço da terra alheia. Também não éramos donos do Wal-Mart quando começamos a plantar laranjas nessa terra. E continuamos não sendo donos do Wal-Mart quando as laranjas deram um lucro pequeno, apenas para nossa sobrevivência.

Mas o dono do Wal-Mart também não nasceu dono do Wal-Mart. E pode-se dizer que permaneceu assim por um bom tempo. Afinal, o dono do Wal-Mart não era dono do Wal-Mart quando aprendeu o valor do trabalho. O dono do Wal-Mart não era dono do Wal-Mart quando vendeu sua primeira laranja. O dono do Wal-Mart não era dono do Wal-Mart quando usou o dinheiro da laranja para comprar mais laranjas. E o dono do Wal-Mart também não era dono do Wal-Mart quando comprou uma fazenda e investiu o dinheiro de suas plantações.

O dono do Wal-Mart nunca foi muito diferente da gente. Pois é aí que percebemos que a única diferença entre o dono do Wal-Mart e nós é o que fazer com as laranjas. Enquanto nós jogávamos as laranjas nos donos do Wal-Mart da vida clamando por justiça, o dono do Wal-Mart usava as laranjas para tornar-se o dono do Wal-Mart. Como a vida é injusta.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cordel do Coroado

Dizem “Deus é brasileiro”.
Eis aí uma inverdade.
Pois se Deus nasceu aqui,
Deus nasceu em que cidade?

Em Brasília é que não foi,
Deus teria que idade?
Pois a muito não se vê
Em Brasília integridade.

Lá no Rio não ouviriam
As palavras da Verdade
Deus não faz parte do Bope,
Deus não tem autoridade.

Em São Paulo também não,
Faltaria liberdade.
Se um já fica engarrafado,
que dirá uma Trindade.

Salvador tinha outro Deus,
Dono da comunidade.
Lá Deus era um coronel
Com talento pra maldade.

Nas cidades nordestinas,
Com esse grau de mortandade?
“Maria morreu no parto,
É o fim da Cristandade”

Pois se Deus nasceu aqui,
Foi-se embora da cidade,
Escolheu ser estrangeiro
A viver na insanidade.

Isabella não morreu

Isabella não morreu. Mais de uma vez. Isabella não morreu tantas vezes, que é impossível calcular tudo o que morreu no lugar dela. Afinal, matou-se muita coisa para reviver Isabella.

Ninguém liga se um cartão corporativo cai do sexto andar. Cartões corporativos não são crianças. Mas podem estar tirando comida da boca de muitas. Crianças essas que não são Isabella. Porque Isabella não morreu de fome, nem de dengue, nem no tráfico infantil, nem de tiro na favela. Isabella morreu, seja lá do que for, mas vive na Globo, no SBT, na Veja, na internet, em todo lugar.

Se o Brasil fosse um programa de televisão, a morte de Isabella teria resolvido todos os nossos problemas. Porque desde Isabella, muita coisa não acontece. Ninguém mais vende bala no sinal, ninguém mais toma bala de revólver. Ninguém mais rouba do governo, ninguém é roubado por ele. Nenhum político virou corrupto, nenhum corrupto virou político.

Isabella levou consigo todas as boas notícias, e as más também. Mas, por mais trágica que seja, a verdade não morre. E a verdade é que o Brasil não é um programa de televisão e Isabella, é triste, mas Isabella morreu.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Made in Brazil

Nós não andamos por aí pelados. Para falar a verdade, nós nem andamos por aí. Nós dirigimos por aí. Usamos roupas e carros. De marca. E nem dá para questionar a qualidade, porque nós compramos de vocês.

Nós também compramos seus princípios, e pagamos cada centavo. Então, se isso esclarece a sua dúvida: não, nós não trepamos indiscriminadamente. Nossos pais não trepavam indiscriminadamente, nossos avós não trepavam indiscriminadamente e nossos bisavós...bem, desses aí não dá para falar muita coisa. Só conheceram a civilidade de verdade quando vocês chegaram aqui.

Mas não foi só isso que aprendemos com vocês. Seus livros também invadiram nossas estantes e seus hábitos, nosso modo de vida. Portanto, pense duas vezes antes de dizer que levamos vida fácil pois, imitando vocês, descobrimos o quão complicada ela deve ser.

Nós não somos diferentes de vocês. E se domamos nossos instintos e apagamos nossa cultura só para provar isso, não é qualquer gringo de merda que vai dizer que em 500 anos não progredimos nada. Há meio milênio, vivíamos para aprender. Hoje, somos ensinados a viver. Isso, caro amigo, se chama progresso.